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Opinião

Prazer em conhecê-la Natércia

28 setembro 2010 - 18h38Por Wilson Valentim Biasotto

Eram seis horas, embora o barulho da chuva serena e refrescante fosse um convite a permanecer sob os lençóis, já havíamos tomado a primeira xícarade café. No sábado havíamos nos recolhido cedo, o Palmeiras nos dera a alegria da vitória diante do Flamengo, lá no Rio de Janeiro, e a noite fora bem dormida. Helena pintava mais uma fraudinha para o nosso primeiro neto que deve chegar nas proximidades do Natal, João Pedro, um messias (no sentido de muito esperado) que já é amado sem que se saiba ainda a cor de seus olhos, os jeitos e trejeitos que trará consigo ao mundo. Eu, bem eu, quando já me enfastiava de ler quase toda a edição da Folha de São Paulo desse domingo (26/09/2010) em que o jornal faz uma mal disfarçada campanha anti-Lula e anti-petista, acabei chegando ao caderno Ilustradíssima, onde conheci Natércia.

Quando jovem era assinante da revista Seleções Readers Digest e nem por isso tornei-me americanófolo, ao contrário, passei a ver nos Estados Unidos o retrato acabado do imperialismo. Agora, já amadurecido, por que não posso ler a Folha sem tornar-me adepto do liberalismo econômico? Ora, ora, e afinal, se não lesse tal matutino como teria conhecido Natércia?

Natércia foi uma agradável surpresa embora o nome em si tenha-me feito lembrar o comentarista esportivo Juarez Soares que numa feita, durante um jogo do São Carlense, referiu-se a um zagueiro chamado Biasotto perguntando se isso lá era nome de jogador de futebol? E Natércia, seria nome de escritora? Natércia Pontes! Nunca tinha ouvido falar, confesso a minha ignorância. Ao ler o seu texto, pela primeira vez, gostei. Reli e tornei a gostar, então quis saber quem era a autora.

Oh! Maravilhoso mundo dos sites de busca! Natércia é cearense, nasceu em 1980, escreveu um livro chamado Mulerez e tem um blog: natercia.blogspot.com/ onde posta os seus escritos.

Permita-me, Natércia Pontes, que reproduza aqui em Dourados e nesse nosso Mato Grosso do Sul o seu precioso texto, coisa que não fiz ontem porque a Folha Digital tem mecanismos que não permitem reprodução, como se o texto não tivesse se tornado público a partir de sua publicação. Tive sorte em presumir que você o postaria hoje em seu blog:

“ERA UMA ABÓBORA tão bonita, que a senhora Guga parou perplexa. Nem regateou o preço com o feirante parrudo, meteu-a no saco e levou-a para
casa, no colo, como se fosse um bebê. Estendeu a toalha de festas na mesa e nela depositou com carinho e admiração a abóbora mais bonita já vista. Uma semana passou e a abóbora continuava sobre a mesa de jantar. O tom laranja começava a esmaecer e alguns pontos cinzas surgiam na superfície. A senhora Guga lustrou a abóbora com um paninho úmido, olhou-a com ternura e seguiu impassível a sua rotina tevê, cozinha, banheiro e cama. Outra semana passou e os pontos cinzas pretejavam profundos, rajadas de vermelhos enrugavam a casca antes lisa, que murchava como o rosto triste da senhora Guga. Viam-se algumas moscas minúsculas sobrevoando a abóbora. A senhora Guga espantava os insetos com um leque e acariciava a abóbora, como quem diz: Não se preocupe, querida, está tudo bem.Outra semana passou e um fedor tomava a casa da senhora Guga. Era uma espécie de cheiro de lixo misturado com cheiro de animal morto.

Ela não ligou muito, mas comprou um perfume de lavanda para a casa, que mascarou superficialmente o odor. Outra semana passou e um chorume sangrava da abóbora. A senhora Guga limpava ao redor do fruto e espantava as moscas com afinco e dedicação. Apesar de tanto investimento, o bolor tomava conta de grande parte da abóbora e a toalha que a guarnecia agora estava toda sarapintada de restos putrefatos.

Outra semana passou e a abóbora figurava murcha sobre a mesa de jantar quando o filho ocupado da senhora Guga veio visitá-la. "Mamãe, o que é isso? Por que a senhora não joga essa abóbora podre fora? Mamãe, isso pode trazer doenças. Mamãe, a senhora está louca? Mamãe, vou tomar providências imediatamente!" A senhora Guga consentiu calada. Sentia-se culpada, mas não sabia o porquê. Seu filho ocupado fez uma ligação e depois de algumas frases peremptórias desligou o telefone. Duas horas depois, quando o oficial de polícia apareceu - balançando o cassetete e fazendo cara de poucos amigos - e recolheu os restos da abóbora podre em um saco preto, a senhora Guga apertou bem os olhos e não entendeu bem onde estava”.

Oh! Céus! Mesmo escrevendo mil páginas eu conseguiria mostrar essa face da velhice. Mesmo que cultivasse abóboras, mesmo que a minha própria mãe tenha passado pelo mal de Alzheimer, mesmo que tenha sido um filho ocupado, eu jamais conseguiria. Bem, ao menos nesse atual estágio de meu aprendizado como escrevinhador, tenho certeza de que não conseguiria.

Suas críticas são bem vindas: [email protected]


O autor é membro da Academia Douradense de Letras; aposentou-se como professor titular pelo CEUD/UFMS, onde, além do magistério e desenvolvimento de projetos de pesquisas, ocupou cargos de chefia e direção.