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Wander Medeiros

Pais e filhos

16 setembro 2016 - 18h56

Você muda a forma de enxergar seu pai depois da experiência de ter um filho. Aquela imagem superestimada de grandeza vai diminuindo, o “super-homem” ganha pouco a pouco feições mais humanas e condizentes com a realidade das fraquezas e limites do seu genitor.

As críticas e cobranças que fazia vão perdendo a importância e o sentido de um dia terem existido, e você finalmente compreende que o papel da paternidade implica situações que, necessariamente, vez ou outra sempre irão colocá-los em confronto, mas isso é importante para seu crescimento, e depois de um tempo, você vai amar cada um desses momentos.

E todo esse processo só se acelera no dia em que você o perde, ao menos foi assim que aconteceu comigo quando tinha dezesseis anos.

Durante anos fiquei intrigado com um número. Oitava série no Colégio Estadual Floriano Viegas, primeira aula do meu professor de língua portuguesa. Enquanto ele se apresentava para a turma, contando um pouco de si, esclareceu que era órfão de pai desde os onze anos, mas que nisso não havia nenhum problema, já que para o filho homem, a convivência do pai se bastava até aquele número, “11 anos”, depois disso haveria de ser, por assim dizer, irrelevante.

Foram duas décadas daquela frase martelando na cabeça, demorou para que eu compreendesse que no fundo aquilo servia como um grande lenitivo ou fuga para depois da minha perda. Durante os momentos difíceis, nas crises, angústias e fraquezas, sempre me agarrava naquela máxima, “mas o professor falou que depois dos 11 não faz tanta falta”, e aquilo servia quase como um código, uma pequena fórmula mágica pra me fazer superar e seguir em frente.

É provável que aquele dileto professor nunca tenha pensado ou sequer sabido disso, do quanto aquele seu testemunho, sua singela frase na sala de aula foi importante para minha vida.

Mas não foi só ele, o fato é que à véspera de completar quatro décadas de existência, agora consigo compreender que embora tenha perdido o laço com meu genitor natural, o outro professor que tive na tenra infância e me pedia para esquecer os exercícios da gramática, me estimulando na leitura e confecção de poesias e contos, já que era nisso que via minha vocação, esse estimado ser a quem devo hoje sem dúvida o pouco reconhecimento profissional que obtive na profissão da palavra e do convencimento, esse também foi um pai pra mim.

Durante a faculdade me recordo daquele professor que brigava comigo exigindo concisão e precisão, e de outro a quem idolatrava por sua didática e altivez, e um dia me concedeu em sala de aula o reconhecimento de me chamar de “colega”, hoje sei que ambos, o primeiro me lixando e polindo, o segundo me conquistando e levantando minha autoestima, esses também foram pais para mim.

E quando em embrenhei na vida profissional, naquele que me deu a primeira oportunidade de trabalho, no escritório que possuía na sala de sua casa, a mesma réplica que inconscientemente reproduzi em minha morada e de onde escrevo este texto, de onde saímos para ganhar e vencer o mundo, esse igualmente foi um pai pra mim.

E tive a experiência de me tornar empregado público, aprendendo a conviver com um “chefe”, onde obtive os melhores exemplos de humildade e dedicação ao trabalho. Durante a primeira rebelião prisional violenta da nossa cidade, com todo mundo aturdido e confuso sobre o que fazer, me dirigi à sua figura silenciosa e reflexiva postada no canto da sala: “e agora, o que vamos fazer?”, a resposta dita em tom ameno e sereno: “montar um gabinete de crise com as autoridades do município e preparar a janta porque os presos precisam comer” foi sem dúvida alguma, uma das mais sábias lições de foco e pragmatismo que tive na vida, sem dúvida, lição de pai.

Quando passei por dificuldades financeiras e pude literalmente contar não com um locatário, mas com um verdadeiro pai, orientador e confidente, foi semelhante ao período em que participei de um exaustivo processo eletivo de classe enfrentando sortilégios de toda ordem, momentos difíceis em que contei com o apoio de alguém que se colocou ao meu lado reputando como indiferente saber se isso era o que melhor atendia seus interesses pessoais ou não, quer dizer, coisa de pai.

E poderia, para não ser injusto, relembrar de diversos outros exemplos dos inúmeros pais com que pude contar durante minha pueril existência, eles que generosamente serviram para aplacar as consequências de minha perda e aos quais sou grato pela felicidade de convivência.

O que me desperta para uma derradeira análise, de que nesta altura já sou pai duas vezes, tentando servir para meus filhos toda soma daquilo que tantos outros me serviram, vivendo o paradoxo de pretender reunir em mim todo auxílio que não lhes falte para a vida adulta.

Pois se pela perspectiva de filho sempre poderemos contar com o auxílio dos vários pais que conheceremos ao longo da jornada, sob a perspectiva de pai não nos resignamos de ao menos tentar, aos olhos dos nossos filhos, sermos únicos.

*O autor é Advogado, Professor da UEMS, Procurador de Entidades Públicas do MS (www.facebook.com/wandermedeirosadv)

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