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Guaranis se mobilizam para julgamento dos acusados de assassinar Marcos Verón

18 fevereiro 2011 - 18h45Por Redação Douranews, com
A decisão não vai devolver meu pai para nós, mas vai devolver nossa dignidade enquanto ser humano. A gente vai se sentir realmente cidadão, declarou Valdelice Verón, filha de Marcos

Indígenas do povo Guarani Kaiowá, de Mato Grosso do Sul, estão se mobilizando para acompanhar o julgamento dos acusados pelo assassinato do cacique Marcos Verón, que começará na próxima segunda-feira, 21 de fevereiro, em São Paulo. O crime ocorreu em 13 de janeiro de 2003 na Fazenda Brasília do Sul, município de Juti, interior do MS, área reivindicada como Tekoha Takwara por Verón e sua comunidade. O júri, que já foi adiado por duas vezes, foi transferido do MS para SP a pedido do Ministério Público Federal (MPF) com o objetivo de garantir a imparcialidade dos jurados e evitar que a decisão sofra influência social e econômica dos envolvidos no crime.

Em janeiro de 2003, por dois dias seguidos, a comunidade de Verón foi atacada e agredida por cerca de 30 a 40 homens armados. No dia 12, um veículo dos indígenas com duas mulheres, um rapaz de 14 anos e três crianças de 6, 7 e 11 anos foi perseguido por 8 km, sob tiros. Na madrugada do dia 13, os agressores atacaram o acampamento. Sete índios foram sequestrados, amarrados na carroceria de uma camionete e levados para local distante da fazenda, onde passaram por sessão de tortura. Durante a agressão, um dos filhos de Verón, Ládio, quase foi queimado vivo. A filha dele, Geisabel, grávida de sete meses, foi arrastada pelos cabelos e espancada. Á época do crime, Verón que tinha 73 anos, foi agredido com socos, pontapés e coronhadas de espingarda na cabeça. Ele morreu vítima de traumatismo craniano.

Três seguranças respondem pelo crime: Estevão Romero, Carlos Roberto dos Santos e Jorge Cristaldo Insabralde. Eles são acusados de homicídio duplamente qualificado por motivo torpe e meio cruel, tortura, seis tentativas qualificadas de homicídio, seis crimes de seqüestro, fraude processual e formação de quadrilha. Outras 24 pessoas também foram denunciadas por envolvimento no crime.

O julgamento, que acontecerá no Fórum Jarbas Nobre, na capital paulista, é considerado histórico e, para os indígenas do MS, abre precedentes para que casos semelhantes tenham o mesmo encaminhamento. É a primeira vez que acusados pela morte de um indígena em Mato Grosso do Sul vão para o banco dos réus. Pelo MPF, participam do julgamento os procuradores da República Marco Antônio Delfino de Almeida, de Dourados, Rodrigo de Grandis e Marta Pinheiro de Oliveira Sena, de São Paulo, além do procurador regional da República Luiz Carlos dos Santos Gonçalves.

Para Valdelice Verón, filha do cacique, o julgamento representa uma vitória. “Para o povo vai ser um marco. A decisão não vai devolver meu pai para nós, mas vai devolver nossa dignidade enquanto ser humano. A gente vai se sentir realmente cidadão, respeitado pelo Estado Brasileiro e pela Justiça”, declarou. Ela lembrou ainda de outros casos de assassinatos de indígenas que nem sequer foram a julgamento, entre eles o do líder indígena Marçal de Souza(Tupã’i), assassinado em novembro de 1983.

Para Saulo Feitosa, secretário-adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) concorda com Valdelice e acrescenta: “o julgamento é uma reposta histórica a esses assassinatos e demais crimes que vêm acontecendo no MS. “Será um marco se trouxer uma reposta favorável aos indígenas, que há muito acompanham os seqüestros, torturas, prisões e assassinatos de seus parentes”.

O assassinato de Marçal, grande líder do movimento indígena e um dos precursores das lutas dos Guarani pela recuperação e reconhecimento de suas terras tradicionais, não ficou no esquecimento, ao menos para seu povo e demais povos indígenas do país. Os acusados do crime foram absolvidos em 1993 e o processo prescreveu, por isso, o julgamento dos acusados pela morte de Verón é uma esperança de justiça e menos impunidade em relação aos crimes praticados contra os indígenas no país.

Valdelice destaca emocionada que o próprio pai lutou para que o crime contra Marçal não ficasse na impunidade. “Meu pai lutou para o julgamento desse caso, mas eles foram levando para frente até prescrever. Agora, a gente não vai deixar que aconteça o mesmo. Vamos levantar nossa voz e lutar por Justiça, porque apesar de tudo ainda acreditamos na Justiça”, disse.

Saulo destaca que o assassinato de Marcos Verón foi o primeiro registrado entre os Guarani Kaiowá no primeiro mandato do presidente Lula, vitória que vinha da vontade do povo e trazia esperanças de uma vida nova e mais igualitária para o Brasil. “No momento em que o país inaugurava uma nova fase, com um operário assumindo a presidência, a pistolagem continuava e indígenas continuavam sendo perseguidos, criminalizados e assassinados. Situação que só piorou ao longo dos dois mandatos”, finalizou.

Desrespeito

O júri foi suspenso em maio do ano passado, depois que o MPF abandonou o plenário, em protesto contra a decisão da juíza Paula Mantovani Avelino, da 1ª Vara Federal (SP), que iria designar intérprete apenas para os índios que não falam português. Para o MPF, o fato de um indígena compreender o que é perguntado não significa domínio completo do idioma e do universo simbólico que ele representa. Além disso, a ordem para que os índios falem apenas em português, sem auxílio de intérprete, viola convenções internacionais e a Constituição Federal.

A decisão da juíza de não ouvir os indígenas em sua língua materna fere os artigos 231 e 210 da Constituição Federal, bem como diversas convenções internacionais, como o artigo 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre outros.

O artigo 27, parte II, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, determina que “nos estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua”.

O artigo 12 da Convenção 169 da OIT é expresso neste sentido: “Os povos interessados deverão ter proteção contra a violação de seus direitos e poder iniciar procedimentos legais, seja pessoalmente, seja mediante os seus organismos representativos, para assegurar o respeito efetivo desses direitos. Deverão ser adotadas medidas para garantir que os membros desses povos possam compreender e se fazer compreender em procedimentos legais,facilitando para eles, se for necessário, intérpretes ou outros meios eficazes”.

Transferência do júri

Entre os motivos levantados pelo MPF para pedir a transferência do Tribunal do Júri de Dourados (MS) para a capital paulista estão o poder econômico e a influência social do proprietário da fazenda, Jacinto Honório da Silva Filho. Ele teria negociado com dois índios a mudança de seus depoimentos. Eles assinaram um documento em 2004 mudando a versão que deram ao crime, no dia seguinte ao assassinato, inocentando os seguranças contratados pelo fazendeiro. O fazendeiro teria tentado, inclusive, comprar o depoimento do filho do cacique assassinado, oferecendo-lhe bens materiais em troca da assinatura de um termo de depoimento já redigido.

Para Saulo Feitosa, o desaforamento já trouxe uma possibilidade real de se ter um julgamento isento. “O estado de Mato Grosso do Sul apresenta os maiores índices de violência e preconceito contra os povos indígenas. Diversas lideranças já foram atacadas, torturadas e assassinadas na região. Somente por esses motivos já não seria possível ter um julgamento imparcial”.

O MPF citou as manifestações de juiz estadual contra os indígenas e contra o procurador da República do caso. Manifestações na Assembléia Legislativa sul-mato-grossense, condenando os acampamentos indígenas e relativizando a morte das lideranças, bem como opiniões desfavoráveis aos índios em diversos jornais do estado também foram juntadas ao processo, para mostrar que um júri federal realizado em qualquer subseção judiciária do estado teria viés contrário aos índios.

Este foi o terceiro caso de desaforamento interestadual do Brasil. Os dois primeiros ocorreram no julgamento do ex-deputado federal Hildebrando Pascoal. Dois de seus júris federais foram transferidos de Rio Branco (AC) para Brasília.

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